As Coisas: uma história dos anos sessenta

“Onde estavam os perigos? Onde estavam as ameaças? Milhões de homens, outrora, tinham lutado, e até mesmo ainda lutam, pelo pão.

Jérôme e Sylvie não acreditavam que fosse possível lutar por sofás Chesterfield. Mas essa seria a palavra de ordem que os teria mobilizado mais facilmente. Parecia que nos programas, nos planos, nada lhes dizia respeito: estavam pouco ligando para as aposentadorias antecipadas, para as férias alongadas, para os almoços gratuitos, para as semanas de trinta horas.

Queriam a superabundância: sonhavam com vitrolas da casa Clément, com praias desertas só para eles, com voltas ao mundo, com hotéis de luxo.

O inimigo era invisível. Ou melhor, estava dentro deles, os tinha apodrecido, gangrenado, estragado. Cabia-lhes pagar o pato. Pequenas criaturas dóceis, fiéis reflexos de um mundo que zombava deles. Estavam enfiados até o pescoço num bolo do qual nunca teriam mais que migalhas.”

trecho do deliciosamente triste As Coisas: uma história dos anos sessenta, do Geoges Perec, lido ainda por influência do entrevistado fofo e genial da matemática.

A Morte do Gourmet

“Jamais conseguirão me tirar da mente que legumes crus com maionese têm algo de fundamentalmente sexual. A dureza do legume se insinua na untuosidade do creme; não há, como em diversas preparações, química pela qual um dos dois alimentos perde um pouco de sua natureza para se casar com a do outro, e, assim como o pão e a manteiga, torna-se na osmose uma nova e maravilhosa substância. Ali, a maionese e os legumes permanecerem perenes, idênticos a si mesmos mas, como no ato carnal, enlouquecidos por estarem juntos. Quanto à carne, tem um ganho extra; é que seus tecidos são friáveis, despedaçam-se sobre os dentes e se enchem de condimento, de tal modo que aquilo que mastigamos assim, sem falso pudor, é um coração de firmeza aspergido de aveludado. A isso se soma a delicadeza de um sabor sempre igual, pois a maionese não comporta nada picante, nenhuma pimenta e, como a água, surpreende a boca com sua neutralidade afável; e, depois, os matizes requintados das ondas dos legumes: o picante insolente do rabanete e da couve-flor, o doce aguado do tomate, a acidez discreta dos brócolis, a generosidade da cenoura na boca, o anis crocante do salsão… é uma delícia.”

trecho de A morte do gourmetda Muriel Barbery, que narra, em prosa elegantíssima — e estimulante de apetite — os dois dias que antecederam a morte do crítico gastronômico Pierre Arthens e seu drama para sentir, pela última vez, um sabor que ele não sabe onde ou em que encontrar.

Vou Cuspir no Seu Túmulo

“Acho que Tom poderia ter vendido a casa; com o dinheiro seria possível causar alguns aborrecimentos para a família Moran, talvez acabar com um deles, mas eu não queria impedi-lo de agir segundo suas ideias. Eu agia a meu modo. Ele tinha um bocado desses preconceitos de bondade e de divindade na cabeça. Era honesto demais, o Tom, e isso prejudicava. Ele acreditava que, fazendo o bem, colhia-se o bem, ora, quando isso acontece é apenas uma coincidência.

Só há uma coisa que conta, se vingar, e se vingar da maneira mais completa possível. Eu pensei no garoto, que era ainda mais branco do que eu. Quando o pai de Anne Moran soube que ele flertava com sua filha e que eles saiam juntos, aquilo não se arrastou por muito tempo.

Mas o garoto nunca tinha saído da cidade; eu tinha passado mais de dez anos afastado e, em contato com pessoas que não conheciam minha origem, consegui perder aquela humildade abjeta que nos deram pouco a pouco, como um reflexo, aquela humildade odiosa, que fazia os lábios feridos de Tom proferirem palavras de piedade, aquele terror que levava nossos irmãos a se esconderem ao ouvir os passos do homem branco.

Mas eu sabia muito bem que, tomando sua pele, o subjugaríamos, pois ele fala demais e se trai diante daqueles que julga seus semelhantes. Com Bill, com Dick, com Judy, eu já havia conseguido meus pontos. Mas dizer para eles que acabavam de ser ludibriados por um negro, isso não me ajudaria em nada. Com Lou e Jean Asquith eu teria minha revanche sobre os Moran e sobre todos os outros. Dois por um. E eles não acabariam comigo como haviam feito com meu irmão.”

trecho de Vou Cuspir no Seu Túmulo, romance intenso e sujo do Boris Vian, de quem eu já deveria ter lido A Espuma dos Diasmas como preferir uma história de amor fofinha a uma busca por vingança recheada de sexo, sangue e jazz?

O Prazer do Texto

“O texto é um objeto fetiche e esse fetiche me deseja. O texto me escolheu, através de toda uma disposição de telas invisíveis, de chicanas seletivas: o vocabulário, as referências, a legibilidade, etc; e, perdido no meio do texto (não atrás dele ao modo de um deus de maquinaria) há sempre o outro, o autor.

Como instituição, o autor está morto: sua pessoa civil, passional, biográfica,desapareceu; desapossada, já não exerce sobre sua obra a formidável paternidade que a história literária, o ensino, a opinião tinham o encargo de estabelecer e de renovar a narrativa: mas no texto,de uma certa maneira,eu desejo o autor: tenho necessidade de sua figura (que não é nem sua representação nem sua projeção), tal como ele tem necessidade da minha (salvo no “tagarelar”).”

trecho do lindo O Prazer do Texto, do Barthes, que interessados leem aqui. Como é gostoso pensar na leitura como uma fonte de gozo físico.

Como se Casa, Como se Morre

“E levam uma vida bem feliz. Têm a sorte de não ter filhos; filhos iriam perturbá-los. O comércio deles prospera, a pequena loja cresce, as vitrines se enchem de joias e pêndulos. É Louise que toma conta do negócio. Ela fica, durante horas, no balcão, sorrindo para os clientes, assegurando-lhes que jóias fora de moda foram fabricadas na véspera; à noite, com a pena na orelha, verifica as contas.

Muitas vezes, passa o dia inteiro correndo os quatro cantos de Paris, por causa das encomendas. Toda a sua existência transcorre na preocupação constante com o comércio; a mulher desapareceu, resta apenas uma caixeira ativa e astuciosa, sem sexo, incapaz de um descuido, com a idéia fixa de aposentar-se com cinco ou seis mil francos de renda, para ir comê-los, em Suresnes, numa casa construída em forma de chalé suíço.

Por sua vez, Alexandre demonstra uma serenidade absoluta, uma confiança cega em sua mulher. Ele ocupa-se apenas com os trabalhos de relojoaria, com o conserto de relógios e pêndulos; e parece que a própria casa é um grande relógio, cujos ponteiros eles acertaram entre si para sempre. Jamais irão saber se se amaram. Mas sabem, com toda certeza, que são sócios honestos, ávidos pelo dinheiro, que continuam a dormir juntos para evitar uma dupla lavagem de lençóis.”

trecho de um dos pequenos contos do delicioso Como se Casa, Como se Morre, do Émile Zola, cuja adaptação para o cinema vi numa aula de sociologia, no primeiro período de Comunicação, há distantes oito anos.

Quem não se animar a comprar a bonitinha edição da Editora 34, encontra a mesma tradução aqui.

Zazie no Metrô

Ela beberica o chope, com distinção, não foi fosse pelo auricular levantado.
– E não é só isso – é o que ela acrescenta-, eu, que você tá vendo aqui na sua frente, pois é, eu depus no processo, e ainda por cima em sessão fechada.
O sujeito não reagiu.
– Não acredita?
– Claro que não. A lei não permite uma criança depor contra seus próprios pais.
– Pra começo de conversa, tinha mais de um dos pais, em primeiro lugar, e depois o senhor não sabe de nada. O senhor tinha que ir lá em casa em Saint-Montron, eu ia te mostrar um caderno onde eu colei todas as matérias de jornal que falam de mim. Até porque o Georges, enquanto a mamãe foi pra cadeia, me deu de Natal uma assinatura do Argus da Imprensa. Conhece esse Argus da Imprensa?
– Não – diz o sujeito.
– Lamentável. E anda quer conversar comigo.
– Por que você teria testemunhado em sessão fechada?
– Ficou interessado, hein?
– Não especialmente.
– Mas que dissimulado.
Ela dá um gole no chope, com distinção, não fosse pelo auricular levantado. O sujeito não dá um pio (silêncio).
– Vamos – Zazie termina dizendo – também não é pra ficar magoado assim. Vou te contar a minha história.
– Estou ouvindo.
– Então. Preciso dizer que a mamãe ela não ia ca cara do papai, então o papai ficou triste por conta disso e começou a encher a cara. Era cada garrafão que ele mandava pra dentro. Então, quando ele ficava daquele jeito, tinha que ficar longe dele, ia sobrar pau até pro gato. Que nem na música. Conhece?
– Sei – diz o sujeito.”

trecho do divertidíssimo Zazie no Metrô, do Raymond Queneau, leitura ainda na conta da influência do entrevistado fofo da matemática.

Que Nosso Desejo Aumenta com a Dificuldade

Terça-feira passada, dia 28 de fevereiro, foi aniversário do queridíssimo — e excelente, nas palavras do também adorado Cyro dos Anjos–, Michel de Montaigne, que, aos trinta e poucos anos, realizou o que é hoje meu grande sonho de consumo: se refugiou num castelo e passou o resto de sua vida lendo os grandes, refletindo sobre tudo e produzindo uma das coisas — e não apenas livros — mais lindas já criadas, seus Ensaios.

Abaixo, para celebrar a preciosa data, fica parte de um dos meus textos preferidos, um ensaio chamado Que Nosso Desejo Aumenta com a Dificuldade, escrito por volta de 1576, e encontrado no segundo volume da edição d’Os Ensaios pela Martins Fontes; um texto que mostra um Montaigne fofo e saidinho [ que grande partido você era, Michel! ♥ ]

“Por que Pompeia inventou de ocultar sob uma máscara as belezas de seu rosto, senão para encarecê-las junto a seus amantes? Por que foram cobertas até abaixo dos calcanhares essas belezas que todas desejam mostrar, que todos desejam ver? Por que elas cobrem de tantos empecilhos uns sobre os outros as partes onde se aloja principalmente o nosso desejo e o delas? E para que servem esses espessos bastiões com que as nossas acabam de armar seus flancos, se não para negacear nosso apetite e afastando-nos para elas?

Et fugit ad salices, et se cupit ante videri. (Ela foge para os salgueiros, mas quer que a vejam antes. Virgílio)

Interdum túnica duxit opera moram. (Às vezes ela faz de sua túnica uma muralha contra meus avanços. Propércio)

Para que serve o artifício desse pudor virginal? Essa frieza tranqüila, essa compostura severa, esse alarde de ignorância das coisas que elas conhecem melhor que as instruímos, se não se não para aumentar nosso desejo de vencer, domar e abater, para nosso prazer, toda essa cerimônia e esses obstáculos?

Pois há não apenas prazer como também glória em enlouquecer e desencaminhar essa doçura afetada e esse pudor pueril, e em sujeitar à mercê de nosso ardor uma gravidade altiva e arrogante. É uma glória, dizem eles, triunfar sobre o rigor, modéstia, a castidade e a temperança; e quem desaconselha às mulheres essas qualidades trai a elas e a si mesmo.

Temos de crer que o coração lhes freme de medo, que o som de nossas palavras fere a pureza de seus ouvidos, que elas nos odeiam por isso e consentem em nossa importunidade devido a uma força inelutável. A beleza, mesmo todo-poderosa, não tem como fazer-se saborear sem essa mediação.

Vede na Itália, onde há mais beleza à venda, e da mais fina, como ela tem de procurar outros meios externos e outros artifícios para tornar-se aprazível; e, entretanto, na verdade, não importa o que faça, sendo venal e pública, permanece fraca e lânguida: assim também, mesmo na coragem, de duas ações iguais consideramos porém como a mais bela e mais digna aquela em que há mais dificuldade e que oferece mais risco.”

O passeio

“Parecia-lhe que algo sombrio pairava sobre ele, algo de angustiante. Ele voltou a sentar-se num banco. As carruagens continuavam a passar rapidamente. “Teria feito melhor em não vir aqui”, pensava, “pois sinto-me algo transtornado”. Pôs-se a pensar em todo este amor, venal ou apaixonado, em todos estes beijos, pagos ou gratuitos, que desfilavam diante de si.

O amor! Ele não o conhecia minimamente. Não tinha tido na sua vida senão duas ou três mulheres, por acaso, imprevisivelmente, pois as suas posses não lhe permitiam mais extravagâncias. E reflectia sobre essa vida que tinha levado, tão diferente da vida de todos os outros, essa vida tão sombria, tão triste, tão chata, tão vazia.

Há seres que não têm mesmo nenhuma oportunidade. E, de repente, como se um véu espesso se tivesse rasgado, apercebeu-se da miséria, da miséria infinita e monótona da sua existência: a miséria do passado, a do presente, a do futuro. Os últimos dias semelhantes aos primeiros, sem nada à sua frente, nada atrás de si, nada em seu redor, nada no coração, nada em parte alguma.”

d’O Passeio, em O Abandonado e Outros Contos, do Guy de Maupassant.

Para Zara

“Zara,

Antes de tudo, devo esclarecer que não há nenhuma relação entre o título da obra e o meu ‘estado de espírito’ …

Espero que goste (não conheço essa tradução) e que o “abandonado” seja um bom companheiro de viagem.

Com carinho,

José Martins Costa”

dedicatória do exemplar de O Abandonando e Outros Contos, do Guy de Maupassant, pego emprestado na biblioteca pública estadual.

José, caso você leia isso, o Abandonado está sendo um ótimo companheiro de viagens. Espero que a sua Zara/Sara tenha voltado rápido para você.

Talvez uma história de amor

” – Vou lhe dar um conselho sobre Clara – disse Armelle.

– Pois não.

– Não tente imaginá-la. Não a fantasie. Seria um erro fatal. Pois, no dia em que a encontrar, ficará decepcionado.

– Não imaginá-la- repetiu Virgile, para enfiar bem a ideia na cabeça.

– Você não percebe, Virgile, mas é preciso se defender da sua inacreditável capacidade de imaginação.

Armelle tinha razão: Virgile imaginava as mulheres que amava. Provavelmente, aliás, amava-as justamente por imaginá-las. Ao encontrá-las, cobria-as com cores e traços que não lhe pertenciam. Se Armelle era tão próxima dele, é porque tinha consistência e mistério suficientes para não colocar em marcha a máquina criadora do amigo. Não havia nela nenhum vazio a ser preenchido.

No entanto, o alerta de Armelle era inócuo, pois, pela primeira vez, Virgile estava diante de uma mulher nitidamente inimaginável. A imaginação não brota ex nihilo; ela precisa de sinal à sua disposição, a mínima partícula ou pigmento de que pudesse se servir para compor uma pintura de Clara.

Certamente, poderia fazer dela um retrato perfeito: ela seria tudo aquilo que ele deseja encontrar em uma mulher. Mas ele estava bem precavido quanto aos riscos desse tipo de concepção. Espontaneamente, quando imaginamos o nosso parceiro ideal, desenhamos a nós mesmos, sem as lacunas ou fragilidades e com o sexo que mais nos convenha.

Trecho muito verdadeiro de Talvez uma história de amor…, do Martin Page, indicado pelo Guilherme e lido, temerariamente, durante o fim de semestre.