Esforços Olímpicos

“Em algum ponto de nosso desenvolvimento, Paul e eu mudamos de posição. Quando eu era criança, sempre me elogiaram por reprimir desejos. E assim desejar algo exigiu prática. Eu queria esse brinquedo, ou aquela barra de chocolate? Meus pais me ensinaram a dizer não. No entanto, logo aprendi que a resposta certa era sim.

O que os grandes atletas têm que nós não temos é um desejo irrestrito, eu costumava dizer. O desejo gera a necessidade e a necessidade gera a ação. Não é fantástico? Paul, que tinha acabado de começar a estudar budismo, respondia: não ia ser mais simples não desejar nada?

Porque o problema do desejo é que nunca se dissipa.

Acho que Paul tem razão. Tinha? A ausência de desejo de fato reduz a dor.

Não consigo sair do apartamento, e estou pensamento que, quanto menos me mexer, menos o movimento parece necessário. A neve vai cair do seu modo silencioso, sem pressa. E parece bom deixar tudo isso se dissipar — meu apego à comida e às pessoas e aos lugares.”

trecho do bem-construído [ e terapêutico? ] Esforços Olímpicos, da Anelise Chen.

Estação Atocha

“Mas minha pesquisa me ensinara que esse tecido de contradições que constituía a minha personalidade era, na melhor das hipóteses, um poema, em que por ‘poema’ se entende a incapacidade da linguagem de cumprir a potencialidade que ela mesma afigura; só então a minha autoalienação seria redefinida como crítica, estética, em vez de ser um efeito colateral do que os experts definiriam como um problema de dependência de substâncias psicotrópicas, definição bastante apropriada que tem origem não tanto no meu anseio de evadir do real, mas no meu desejo de ter um pretexto químico para suprir a indisponibilidade do real.

Mas será que minha relação com as drogas era, por si só, falsa? Nunca tinha injetado nada em mim; se começasse a mijar sangue, iria logo ao médico, não a um bar; pensava em parar com tudo, exceto com a parte de beber socialmente, tomar a dose prescrita dos meus comprimidos e fumar um baseado de vez em quando, e somente se tivesse vontade.”

trecho de Estação Atocha, do Ben Lerner, provavelmente a leitura mais divertida do ano.

Iniciantes

“O que qualquer um de nós sabe de verdade sobre o amor?’, disse Herb. ‘Estou falando a sério mesmo, vocês me desculpem. Mas acho que a gente não passa do nível de iniciantes no amor. A gente diz que ama um ao outro, e amamos mesmo, não duvido disso. Nós nos amamos e amamos muito, todos nós. Eu amo a Terri e a Terri me ama, e vocês dois amam um ao outro. Vocês conhecem o tipo de amor de que estou falando agora. Amor sexual, a atração pela outra pessoa, o parceiro, conhecem tão bem quanto eu o tipo de amor simples e cotidiano. O amor carnal, então, e o amor sentimental, podem chamar assim o contato cotidiano com o outro.

Mas ás vezes eu me vejo em sérios apuros quando tenho de explicar o fato de que, afinal, eu devo ter amado também a minha primeira esposa. Mas eu amei, sei que amei. Portanto, acho que, antes que vocês possam dizer qualquer coisa, eu sou como a Terri nesse aspecto. Terri e Carl.’

Refletiu por um minuto e depois foi em frente. ‘Mas a certa altura eu achava que amava minha esposa mais que a própria vida, e tivemos filhos. Mas agora morro de ódio dela. Sério. Como é que a gente pode entender isso? O que foi que aconteceu com aquele amor? Será que aquele amor simplesmente foi apagado do grande quadro-negro, como se nunca tivesse estado lá, como se nunca tivesse acontecido? O que foi que aconteceu com ele, é isso o que eu gostaria de saber. Queria que alguém pudesse me explicar. Então tem o Carl. Ele amava tanto a Terri que tentou matá-la e acabou matando a si mesmo.’ Parou de falar e balançou a cabeça.”

trecho de “Iniciantes”, conto que dá nome ao aterrador livro do Raymond Carver, do qual destaco, além do conto que titula a obra, os angustiantes e terríveis, por motivos e tons muito diferentes, “Uma Coisinha Boa” e “Diga às mulheres que a gente já vai”.

Aos Pedaços

“Nas madrugadas em que a insônia chega com força, tenho vontade de te ligar. Pra não falar nada. Só pra ouvir sua respiração e sentir que você dormiu de novo. Volta e meia uns sparks do seu rosto invadem as linhas dos meus livros e, quando me dou conta, adormeço como se estivesse ao seu lado.

Eu quero fazer muitas coisas pra te ter. Todas inúteis. Ir do Leblon a Copacabana pra te levar flores amarelas. Pichar as paredes do seu quarto com versos de Córtazar. Espalhar caixas de som por toda a cidade, tocando Nando Reis. Apagar os nomes dos países no meu mapa múndi e pôr o seu em todos eles.

Provavelmente, depois de fazer isso tudo, eu apenas tenha um sono mais tranqüilo. Um sono de dever cumprido. Enquanto não consigo, vou me perdendo em cartas e comédias românticas francesas. Todo o resto é você.”

trecho de “Das Cartas”, uma das minhas preferidas do Aos Pedaços, do Rodrigo Levino  [ ah, Rodrigo… ♥ ], que reencontrei durante um chato backup.

A Vênus de Quinze Anos

“É verdade; eu senti a sua língua tocar um ponto onde nunca havia alcançado antes. E não é que foi uma delícia quando alcançou? Quase me venho outra vez só de pensar! Mas chega desses atrevimentos. Para mostrar como estou comportada, vou prosseguir com a minha história, se você quiser. Quero contá-la porque sei que você deve estar o tempo todo imaginando como uma garota da minha idade pode ser assim tão…como poderíamos dizer, Jack?

– Travessa- sugeri.

– Ah, ‘travessa’, muito bem. Claro que sempre fui precoce, como se costuma dizer, e além disso a amizade com Ylette e todas as coisas maravilhosas que ela fazia comigo levaram-me a amadurecer muito mais rápido que as outras garotas. Devo dizer que eu era uma das favoritas da escola e, quando souberam que eu e Ylette praticávamos o minete, comecei a receber bilhetinhos de várias outras garotas implorando para que eu dormisse com elas. Uma, muito querida, chegou ao ponto de me dar as medidas da língua, que havia tirado com um pedaço de barbante.”

trecho de A Vênus de Quinze Anos, novelinha erótica supostamente escrita pelo inglês Charles Swinburne sobre as peripécias sexuais de Flossie, a Vênus do título, sua amiga Eva e o narrador Jack Archer.

Essencial Franz Kafka

“Ah’, disse o rato, ‘o mundo torna-se a cada dia mais estreito. A princípio era tão vasto que me dava medo, eu continuava correndo e me sentia feliz com o fato de que finalmente via à distância, à direita e à esquerda, as paredes, mas essas longas paredes convergem tão depressa uma para a outra, que já estou no último quarto e lá no canto fica a ratoeira para a qual eu corro.’ — ‘Você só precisa mudar de direção’, disse o gato e devorou-o.”

“Pequena Fábula”, conto do F. Kakfa encontrado na seleção Essencial Franz Kafka, que traz, antes de cada texto, ótimos comentários do Modesto Carone. Destaque para o aterrorizante e terrível “Na Colônia Penal” e pro divertido “Um relatório para uma academia“.

Kenneth Noland

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Desejando muito essa sala. Alguém me dá? Não faço questão do Noland.

Mahler

“O movimento está maravilhosamente cheio de contrastes: nostalgia romântica, como quando o sujeito principal retorna pela primeira vez (uma passagem acima da qual Mahler escrevinhou na partitura ‘Ó dissipados dias de juventude! Ó dissipado amor’), desafio trágico (heroico), quietude sobrenatural, um clímax de desespero, fanfarras de trompetes em surdina e uma profética e extraordinária coda em que a orquestra é reduzida a um pequeno grupo de instrumentos solistas brincando com fragmentos de temas e um solo de trompa nos leva de volta a um mundo musical mais simples, enquanto o tema do ‘adeus’ se desintegra lentamente.

Mahler tinha sido tão profundamente afetado pelos poemas de Bethge que sentiu, de forma clara, não se terem esgotado no ciclo de canções sinfônicas as possibilidades musicais oferecidas por aqueles: a Nona Sinfonia é, portanto, uma extensão de Das Lied, quase um comentário sinfônico sobre ele.

Com que força isso foi transmitido, é evidente da reação de Alban Berg, expressa em carta à sua esposa no verão de 1910. Mahler emprestara-lhe a partitura. ‘O primeiro movimento é a coisa mais celestial que Mahler até hoje escreveu’, disse Berg. ‘É a expressão de um amor excepcional à terra, o anelo por viver nela em paz, por desfrutar da natureza em suas profundidades – antes que a morte chegue. Pois ela chega irresistivelmente. Todo o movimento está impregnado de premonições de morte.'”

trecho de Mahler, do Michael Kennedy, sobre o celestial [melhor termo] primeiro movimento da Nona Sinfonia, cuja apresentação pela Filarmônica daqui foi um dos pontos altos das noites do ano passado.