Filho de Jesus

“Ele resolveu o impasse se ajoelhando e lavando os pés da mulher.

Primeiro ele saiu mais uma vez do quarto, e depois de um tempo voltou com uma bacia, uma coisa de plástico amarelo feita para lavar a louça, carregando-a com tanto cuidado que ficou claro que havia água lá dentro. Ele estava com um pano sobre um dos ombros. Colocou a bacia no chão e agachou, apoiando-se em um joelho, com a cabeça baixa, como se fosse pedi-la em casamento.

Ela ficou sem se mexer talvez por um minuto inteiro, o que me pareceu um tempo muito longo ali de fora, no escuro, com uma grande solidão e o terror de uma vida que ainda não tinha sido vivida, e as TVs e os irrigadores de jardim fazendo o barulho de mil vidas que nunca seriam vividas, e os carros passando com o som do trajeto, do movimento, intocáveis, inalcançáveis.

Aí ela se virou na direção dele, tirou os tênis, esticou o braço para alcançar um calcanhar erguido, depois o outro, e tirou as pequenas meias brancas. Ela mergulhou o dedão direito na água, depois o pé inteiro, que desapareceu na bacia amarela. Ele pegou o pano que estava sobre o ombro, sem nunca erguer a cabeça para olhar a esposa, e começou o processo.”

trecho de “Beverly Home”, meu conto preferido de Filho de Jesus, do Denis Johnson. Destaques para “Dundun” e “Emergência” [ quanta poesia cabe na descrição das coisas mais deprimentes? ]

Esforços Olímpicos

“Em algum ponto de nosso desenvolvimento, Paul e eu mudamos de posição. Quando eu era criança, sempre me elogiaram por reprimir desejos. E assim desejar algo exigiu prática. Eu queria esse brinquedo, ou aquela barra de chocolate? Meus pais me ensinaram a dizer não. No entanto, logo aprendi que a resposta certa era sim.

O que os grandes atletas têm que nós não temos é um desejo irrestrito, eu costumava dizer. O desejo gera a necessidade e a necessidade gera a ação. Não é fantástico? Paul, que tinha acabado de começar a estudar budismo, respondia: não ia ser mais simples não desejar nada?

Porque o problema do desejo é que nunca se dissipa.

Acho que Paul tem razão. Tinha? A ausência de desejo de fato reduz a dor.

Não consigo sair do apartamento, e estou pensamento que, quanto menos me mexer, menos o movimento parece necessário. A neve vai cair do seu modo silencioso, sem pressa. E parece bom deixar tudo isso se dissipar — meu apego à comida e às pessoas e aos lugares.”

trecho do bem-construído [ e terapêutico? ] Esforços Olímpicos, da Anelise Chen.

Encaixotando Minha Biblioteca

“Embora soubesse que éramos apenas os guardiães do jardim e da casa, eu sentia que os livros propriamente ditos pertenciam a mim, eram parte de quem eu era.

Falamos de certas pessoas que relutam em nos emprestar sua atenção ou nos dar a mão: eu raramente emprestava um livro. Se desejava que alguém lesse determinado volume, comprava um exemplar e o oferecia como presente.

Creio que emprestar um livro significa incitar o roubo. A biblioteca pública de uma das minhas escolas exibia um aviso ao mesmo tempo excludente e generoso: ESSES LIVROS NÃO SÃO SEUS: PERTENCEM A TODOS.

Nenhum anúncio desse tipo poderia ser posto em minha biblioteca. Para mim, minha biblioteca era um espaço profundamente privado, que me envolvia e me espelhava.”

Alberto Manguel dando a real em trecho do fofo Encaixotando Minha Biblioteca, reunião de breves digressões inspiradas pelo processo — sempre sofrido — de encaixotar os livros de sua biblioteca, antes de se mudar da França para Nova York.

A Lua Vem da Ásia

“Agora que já olhei a chuva mais uma vez, e que o silêncio persiste dentro deste hotel mal-assombrado (mudar-me-ei amanhã) o que me resta a fazer é não fazer nada, como sempre, e esperar que as horas escoem lentamente e que o meu corpo durma antes de
mim, ao peso do cansaço e da mais absoluta monotonia.

Deitar-me-ei como um faquir sobre os espinhos do meu leito – bela imagem, sem dúvida — apagarei a luz, rezarei um padre-nosso (eu que não creio em Deus nem creio que ele possa crer em mim) e fingirei de morto por algum tempo, só respirando e deixando que me bata o coração por via das dúvidas.

No escuro a noite é completamente escura, como o podem atestar todos os insones da terra, e o jeito que resta é a gente esperar que, mesmo com a chuva, a alvorada volte a raiar no vidro da janela, e com ela de novo as esperanças e as ideias felizes, que são sempre as mesmas sempre, apesar de todas as decepções ou talvez por isso mesmo.”

trecho de A Lua Vem da Ásia, do Campos de Carvalho, pérola lida graças à indicação do meu grande e querido amigo [ ele ainda não sabe que é ] Antonio Prata.

Quando Deixamos de Entender o Mundo

“Essa era a genialidade da equação de Schrödinger: de alguma maneira era capaz de alinhavar os infinitos destinos de uma partícula, todos os seus estados, todas as suas trajetórias, em uma trama só — a função de onda — que os mostrava superpostos.

Uma partícula tinha muitas maneiras de atravessar o espaço, mas escolhia apenas uma. Como? Por puro acaso. Para Heisenberg, não era mais possível falar de nenhum fenômeno subatômico com certeza absoluta.

Onde antes havia uma causa para cada efeito, agora existia um leque de probabilidades. No substrato mais fundo das coisas, a física não tinha encontrado uma realidade sólida e inequívoca como desejavam Schrödinger e Einstein, regida por um deus racional que puxava os fios do mundo, mas um reino de maravilha e estranheza, filho do capricho de uma deusa de braços múltiplos, brincando com o acaso.”

trecho do fascinante e maravilhoso Quando Deixamos de Entender o Mundo, uma divulgação científica romanceada (?), da lavra do holandês radicado no Chile Benjamín Labatut.

A Bela e a Fera

“- A Fera deve estar mesmo muito faminta para se alegrar dessa maneira com a chegada de sua presa – brincou Bela.

E, apesar da emoção que sentia com a iminência de um acontecimento que, a princípio, lhe seria fatal, pasma diante das magnificências que se sucediam umas às outras, oferecendo-lhe o espetáculo mais fascinante que já presenciara, acrescentou mordazmente para o pai que os preparativos para a sua morte eram mais grandiosos do que a pompa nupcial do maior rei da Terra.”

Bela, mais uma concluinte do curso “Usando o humor para lidar com situações desconfortáveis”, em trecho do texto original de A Bela e a Fera, escrito pela Madame de Villeneuve em 1740, no qual a protagonista é prima do Príncipe/Fera [ a fissura dos nobres pela endogamia, huh? ] e filha de uma fada, o que, infelizmente, não lhe garantiu nenhum tipo de poder.

A edição, muito bonitinha, traz ainda a versão, brevíssima, da Madame de Beaumont, publicada em 1756.

Correio literário — ou como se tornar (ou não) um escritor

“Halina W., Bialystok

Vamos dizer logo uma coisa que vai deixá-la muito chocada: a senhora é uma pessoa por demais ingênua e singela para escrever bem. No âmago de um escritor talentoso remoinham diversos demônios.

E mesmo que estejam adormecidos antes e depois de escrever (se é que deveriam estar adormecidos), durante a escrita eles atuam com vivacidade. Sem a ajuda deles, o escritor não poderia se identificar com todas as vivências complicadas de suas personagens. ‘Nada do que é humano me é estranho’ — oh!, essa sentença não pode ser aplicada às biografias de santos bem-comportados. Nossos cordiais cumprimentos.”

trecho de Correio literário — ou como se tornar (ou não) um escritor, reunião de respostas da Wisława Szymborska aos pobres aspirantes a escritores que submetiam seus materiais ao escrutínio dos redatores do semanário Vida Literária.

Jane Eyre

“- Nunca — disse ele, rangendo os dentes – algo foi ao mesmo tempo tão frágil e tão indomável. Um mero caniço ela parece, na minha mão! ( E ele me sacudiu com a força do seu braço.)

Poderia dobrá-la com o indicador e o polegar, mas de que adiantaria se a dobrasse, se a arrancasse do chão, se a esmagasse? Considere esse olhar: considere o ser resoluto, selvagem e livre que está por trás dele, desafiando-me com mais do que coragem… com um grave triunfo. O que quer que eu faça com sua gaiola, não consigo atingi-la… essa bela e indômita criatura!

Se eu a destruir, se eu despedaçar a pequena prisão, minha ira só fará libertar a cativa. Poderia ser o conquistador da casa, mas a habitante escaparia ao céu antes que eu pudesse me declarar de posse de sua morada de argila. E é você, espírito, com toda a sua determinação e virtude e pureza, que eu quero: não somente a sua frágil forma.

Você poderia vir por sua própria vontade num voo delicado e se aninhar junto ao meu peito, se quisesse. Agarrada contra sua vontade, há de fugir do meu punho como uma essência… há de se esvair antes que eu possa inalar o seu aroma. Ah! Venha, Jane, venha!

Ao dizer isso, ele me soltou, e só me fitou. Era muito mais difícil resistir ao olhar do que ao aperto frenético: mas só uma idiota teria sucumbido agora. Eu enfrentara e iludira sua fúria; tinha que escapar do seu pesar. Afastei-me até a porta.

– Vai embora, Jane?

– Vou embora, senhor.

– Vai me deixar?

– Sim.”

trecho de Jane Eyre, da Charlotte Brontë, romance que me deixou totalmente absorta em revolta, tristeza, esperança, admiração, mais raiva e revolta e mais tristeza, até encontrar um pouquinho de senso de justiça e alívio, mas só ao final.

Impressão Sua

“minha avó luise sempre dizia 

não é bom mudar as plantas de lugar 

botar no sol botar na sombra 

girar o vasinho 

mudar o rumo das coisas 

querendo você ou não 

tudo passa 

minha avó luise 

antes de passar 

também me disse 

que tudo passa 

também o símbolo do infinito 

tatuado no seu braço 

sua tese de doutorado 

o morro do corcovado 

com cristo e tudo 

passarão no final”

trecho de fofo e divertidíssimo Impressão Sua do fofo, divertidíssimo e genial André Dahmer [ como faz pra ser parça? ], leiturinha leve para um domingo sem sol, mas também sem chuva.

Estação Atocha

“Mas minha pesquisa me ensinara que esse tecido de contradições que constituía a minha personalidade era, na melhor das hipóteses, um poema, em que por ‘poema’ se entende a incapacidade da linguagem de cumprir a potencialidade que ela mesma afigura; só então a minha autoalienação seria redefinida como crítica, estética, em vez de ser um efeito colateral do que os experts definiriam como um problema de dependência de substâncias psicotrópicas, definição bastante apropriada que tem origem não tanto no meu anseio de evadir do real, mas no meu desejo de ter um pretexto químico para suprir a indisponibilidade do real.

Mas será que minha relação com as drogas era, por si só, falsa? Nunca tinha injetado nada em mim; se começasse a mijar sangue, iria logo ao médico, não a um bar; pensava em parar com tudo, exceto com a parte de beber socialmente, tomar a dose prescrita dos meus comprimidos e fumar um baseado de vez em quando, e somente se tivesse vontade.”

trecho de Estação Atocha, do Ben Lerner, provavelmente a leitura mais divertida do ano.