Esforços Olímpicos

“Em algum ponto de nosso desenvolvimento, Paul e eu mudamos de posição. Quando eu era criança, sempre me elogiaram por reprimir desejos. E assim desejar algo exigiu prática. Eu queria esse brinquedo, ou aquela barra de chocolate? Meus pais me ensinaram a dizer não. No entanto, logo aprendi que a resposta certa era sim.

O que os grandes atletas têm que nós não temos é um desejo irrestrito, eu costumava dizer. O desejo gera a necessidade e a necessidade gera a ação. Não é fantástico? Paul, que tinha acabado de começar a estudar budismo, respondia: não ia ser mais simples não desejar nada?

Porque o problema do desejo é que nunca se dissipa.

Acho que Paul tem razão. Tinha? A ausência de desejo de fato reduz a dor.

Não consigo sair do apartamento, e estou pensamento que, quanto menos me mexer, menos o movimento parece necessário. A neve vai cair do seu modo silencioso, sem pressa. E parece bom deixar tudo isso se dissipar — meu apego à comida e às pessoas e aos lugares.”

trecho do bem-construído [ e terapêutico? ] Esforços Olímpicos, da Anelise Chen.

Epicteto e a Sabedoria Estoica

“O curso de Epicteto não será feito com trechos de referências e de citações, provavelmente ele não satisfaria nossos critérios universitários, e por uma razão simples: explicar o texto pelo texto, ressaltar as estruturas profundas, colocá-lo em relação com obras paralelas, situá-lo na trajetória do autor, tudo isso lhe teria parecido forte inutilidade.

A única coisa que conta é compreender o que diz o autor para assimilar a lição que ele nos transmite, retirando o que de melhor pudermos compreender para nós mesmos. Quando o discípulo explica Crisipo o que importa é o discípulo. Não se trata de propor análises brilhantes e originais, de renovar a abordagem de autor, mas de tomar uma página como porta de entrada em uma doutrina cuja razão é nossa transformação. Não se trata, portanto, de procurar a virtuosidade, mas de se entregar a uma espécie de experiência espiritual. Um trabalho de pura inteligência seria absolutamente vão.

Epicteto insiste na inutilidade de uma reflexão filosófica que não implique a pessoa em sua totalidade. A filosofia não é uma massa de informações que se acumula, que se organiza intelectualmente, ela tem que ser digerida e não amontoada. Não se trata de fazer filosofia, mas de ser filósofo. Não seria um absurdo meditar sobre o bem e o mal se tal meditação não servisse para a realização do bem? A filosofia não está, portanto, nos livros, eles são apenas um meio. A erudição pura não tem sentido.”

trecho de Epicteto e a Sabedoria Estoicado Jean-Joël Duhot, leitura obrigatória pra quem se interessa pelo queridíssimo pessoal do Pórtico.

Discurso do Método

“Depois disso, eu descrevera a alma racional, e havia mostrado que ela não pode ser de maneira alguma tirada do poder da matéria, como as outras coisas a respeito das quais falara, mas que devem claramente ter sido; e como não é suficiente que esteja alojada no corpo humano, assim como um piloto em seu navio, salvo talvez para mover seus membros, mas que é necessário que esteja junta e unida estreitamente com ele para ter, além disso,sentimentos e desejos parecidos com os nossos, e assim compor um verdadeiro homem.

Afinal de contas, eu me estendi um pouco aqui sobre o tema da alma por ele ser um dos mais importantes; pois, após o erro dos que negam Deus, que penso haver refutado suficientemente mais acima, não existe outro que desvie mais os espíritos fracos do caminho reto da virtude do que imaginar que a alma dos animais seja da mesma natureza que a nossa, e que, portanto, nada temos a recear, nem a esperar, depois dessa vida, não mais do que as moscas e as formigas; ao mesmo tempo que, sabendo-se quanto diferem, compreende-se muito mais as razões que provam que a nossa é de uma natureza inteiramente independente do corpo e, consequentemente, que não está de maneira alguma sujeita a morrer com ele; depois, como não se notam outras causas que a destruam, somos naturalmente impelidos a supor por isso que ela é imortal.”

trecho do Discurso do Método, do Descartes, em que é apresentada a síntese do argumento da imortalidade da alma.

Destaque para a recomendação, no começo da quinta parte, para que os não versados em anatomia se dessem ao trabalho, antes de acompanhar as lições sobre a circulação do sangue, “de mandar cortar diante deles o coração de um grande animal que possua pulmões, já que é em tudo parecido com o do homem.”

No que Acredito

“A religião, por ter no terror a sua origem, dignificou certos tipos de medo e fez com que as pessoas não os julgassem vergonhosos. Nisso prestou um grande desserviço à humanidade, uma vez que todo medo é ruim.

Acredito que quando morrer apodrecei e nada de meu ego sobreviverá. Não sou jovem e amo a vida. Mas desdenharia estremecer de pavor diante do pensamento da aniquilação. A felicidade não deixa de ser verdadeira porque deve necessariamente chegar a um fim; tampouco o pensamento e o pensamento e o amor perdem seu valor por não serem eternos.

Muitos homens preservaram o orgulho ante o cadafalso; decerto o mesmo orgulho deveria nos ensinar a pensar verdadeiramente sobre o lugar do homem no mundo. Ainda que as janelas abertas da ciência a princípio nos façam tiritar, depois do tépido e confortável ambiente familiar de nossos mitos humanizadores tradicionais, ao fim o ar puro nos confere vitalidade, e ademais os grandes espaços têm seu próprio esplendor.”

 trecho de No que Acredito, do Russell, cuja lucidez nunca deixa de me emocionar.

Retórica das Paixões

“Tais são, pois, aproximadamente as mais importantes, por assim dizer, das coisas temíveis e das que de fato se temem; digamos agora em que estado de ânimo se encontram os que temem.

Se o temor é acompanhado de uma expectativa de mal aniquilado, é evidente que ninguém teme entre os que creem que nada poderiam sofrer; não tememos aquilo que não julgamos que não poderíamos sofrer, nem aqueles que não se crê que poderiam causar algum mal, nem mesmo o momento em que não poderia acontecer alguma coisa. Necessariamente, pois, os que pensam que podem sofrer algum mal temem não só as pessoas que podem causá-los, mas também tais males e o momento da ocorrência.

Não creem poder sofrer nem aqueles que estão ou parecem estar em grande prosperidade, o que os torna insolentes, desdenhosos e temerários (criam homens dessa natureza a riqueza, a força, o grande número de amigos, o poder), nem o que creem já terem sofrido todas as coisas temíveis e se tornam indiferentes ao futuro, como os que antecipadamente recebem golpes de bastão; mas para temer é preciso guardar no íntimo alguma esperança de salvação, com respeito àquilo pelo que se luta.

Eis uma prova disso: o temor nos torna aptos a deliberar; ora, ninguém delibera sobre questões sem esperança.”

trecho da Retórica das Paixões, parte do Livro II, da Retórica, do Aristóteles.

Quem se interessar, encontra o livro, em edição grego-português e ótimo prefácio do Michel Meyer, no Scribd. Mais Interessados — e mais com tempo — encontram a Retórica na íntegra aqui.

Minha Mãe se Matou Sem Dizer Adeus

“A arte é promessa utópica de reconciliação entre opostos — ela disse outro dia; aqui desta mesa-mirante me vejo de súbito no colo de minha mãe. Estamos recostados num tronco de árvore. Ela morde fatia de manga verde com sal. Bebe líquido transparente que sai de dentro do cálice. Cachaça talvez: sempre gostou dessa combinação acidificante.

Rejeito bebidas alcóolicas: trauma infantil. Mãe cambaleando pelos cômodos da casa não suscita lembranças bucólicas. Senhora decrépita abdominosa que acaba de sentar à mesa ao lado me pergunta se vale a pena viver. Ela pondera também irônica que tempo todo me pergunto se vale a pena viver. Ela pondera também irônica argumentando que durante as quatro primeiras décadas a vida não é totalmente desprezível; juventus ventus — diria mãe latinista da amiga filósofa.”

trecho de Minha Mãe se Matou Sem Dizer Adeus, do Evandro Affonso Ferreira, livro forte,  bem-escrito e cheio de tiradas incríveis, presente do Guilherme.

Sobre o Cinismo Juvenil

“Há na beleza algo de antiquado, embora seja difícil explicar o quê. Um pintor moderno ficaria indignado se alguém o apontasse como alguém que persegue a beleza. A maioria dos artsitas de hoje parece se inspirar em uma espécie de de rancor contra o mundo, uma vez que gostam mais de provocar o sofrimento significativo do que o prazer sereno. Além do mais, muitas formas de beleza exigem que o homem moderno e inteligente se leve mais a sério do que ele é capaz.

Um cidadão ilustre de uma pequena cidade-estado como Atenas ou Florença podia, sem dificuldade, sentir-se importante. A Terra era o centro do Universo, o homem era o própósito da criação, sua cidade exibia o que o homem tinha de melhor em sua cidade. Nessas circunstâncias, Ésquilo e Dante podiam levar a sério as suas alegrias e tristezas. Eram capazes de sentir que as emoções da matéria individual, assim como os acontecimentos trágicos merecem ser celebrados em versos imortais.

Mas o homem moderno, quando assaltado, pelo infortúnio, tem consciência de ser apenas uma unidade num todo estatístico; o passado e futuro se estendem diante dele numa melancólica sucessão de derrotas triviais. O próprio homem parece um ridículo animal empertigado, que berra e se agita durante um breve interlúdio entre silêncios sem fim.’O homem desacomodado não é mais do que um pobre animal, nu e dividido”, diz o rei Lear, e esta ideia o leva à loucura por ser uma ideia estranha. Para o homem moderno, no entanto, esta é uma ideia familiar que o impele somente à trivialidade.”

observações do Russell sobre o cinismo juvenil e a beleza em “Sobre o Cinismo Juvenil”, um dos 15 artigos compilados n’O Elogio ao Ócio. Destaque para “A Arquitetura e Questões Sociais” e suas propostas visionárias de reorganização do espaço e apoio à emancipação da mulher “dona de casa”, e o lúcido “Em Defesa do Socialismo”. 

O Homem de Gênio e a Melancolia

“É interessante reencontrar esta ideia em uma obra de Aristóteles como a Ética a Nicômaco. ‘Os melancólicos por natureza têm sempre necessidade da medicina.” Creio, aliás, que essa passagem da Ética pode nos ajudar a compreender a personalidade do melancólico. Aristóteles continua, de fato: ‘porque seu corpo está constantemente corroído por causa da mistura, e se encontra sem cessar em estado de desejo violento. Mas o prazer afasta a pena, o prazer que é o seu oposto, como qualquer prazer, se é intenso, e é por isso que os melancólicos são intemperantes e viciosos.’

Dessa maneira, o melancólico é sempre empurrado para a busca do prazer, que não é mais que uma maneira de acalmar a sua dor, nascida da corrosão da bile negra. Ele é sem cessar impelido à distração, o que o conduz, na urgência de encontrar a paz no corpo, a não ser muito escrupuloso na escolha de seu prazer, e o incita ao vício. Pelo efeito da bile que o corrói, o melancólico não tolera a sobriedade calma da vida. Ele é coagido ao divertimento. Ele é um homem do Divertimento.

Pela mesma razão, é um ser de violência e de contraste, vítima da mudança incessante; ele é incompreensível. O melancólico já chegou a limite extremo, onde é esperado. ‘Porque a bile negra é inconstante’, diz o Problema XXX, ‘inconstantes são os melancólicos”.

Mais alguém se reconheceu um pouquinho?

Trecho da apresentação do Jackie Pigeau ao Problema XXX, 1 – O Homem de Gênio e a Melancolia, texto em que Aristóteles analisa a influência das oscilações de humor causadas pelo predomínio da bile negra no corpo, sobre o caráter do melancólico e sua criatividade.

O náufrago

“Fundamentalmente, somos capazes de tudo, mas, também fundamentalmente, fracassamos em tudo, disse. Os nossos grandes filósofos, nossos grandes poetas, se reduzem a uma única frase bem-sucedida, essa é que a verdade; em geral, o que nos fica é tão-somente um matiz filosófico, como se diz, e nada mais, ele disse.

Estudamos uma obra imensa, como, por exemplo, a de Kant, e como passar do tempo ela se reduz à cabecinha prussiana oriental de Kant e a um mundo inteiramente vago de noite e neblina , que termina no mesmo desamparo de todos os outros, disse. Um mundo que pretendeu ser uma imensidão, mas do qual restou um detalhe ridículo, ele disse, como acontece com tudo. No fim, a chamada grandeza chega a um ponto no qual só conseguimos ainda sentir pena de seu caráter ridículo, deplorável. O próprio Shakespare se reduz ao risível, se dispomos  de um momento de clarividência, disse. Há tempos os deuses só nos aparecem de colarinho, em nossas canecas de cerveja. Somente um idiota se admira, disse.”

trecho dO Náufrago, do Thomas Bernhard, que tem me agradado mais pelas reflexões do que pela história em si.